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Telejornais transpiram água benta

Por Leonardo Sakamoto, 

www.latuffcartoons.wordpress.com
O Estado é laico. Isso significa que ele deve defender a livre expressão religiosa de todos, sem tomar partido de nenhum credo especificamente. Garantindo, por outro lado, que a manifestação da fé de alguém não se torne motivo para suplício e sofrimento de outros.

Quando o Estado concede por tempo determinado, sob contrato e com regras de utilização o espaço público para fins privados, a mesma regra deveria ser aplicada. Ou seja, esse espaço não poderia ser usado para promoção de determinado credo em detrimento a outros.

Por ocasião da posse do novo papa, a Globo – que desfruta de uma concessão pública para transmissão de seu sinal – transformou parte de seus programas jornalísticos em apêndices de assessoria de imprensa do Vaticano. Deu para sentir a água benta respingando da tela durante os telejornais.

Não digo isso pelo tamanho da cobertura. Mas pela total falta de senso crítico da mesma. O espírito crítico está longe de ser santo, mas é um dos elementos que diferencia a atividade jornalística de outras, como da publicidade. E a emissora faz valer esse senso crítico ao cobrir política, por exemplo. Por que ignora isso ao tratar de outras relações hegemônicas?

Quem acha que isso não diz respeito aos não-católicos não tem ideia de quanto a instituição em questão continua influenciando o cotidiano das pessoas em um país como o nosso. Basta ver como as liberdades individuais são limitadas pela disputa simbólica, política e legal levadas a cabo por representantes da Igreja Católica. Situação que é reafirmada sistematicamente através de veículos de comunicação.

É claro que a mesma lógica da concessão pública se aplicaria a igrejas evangélicas neopentecostais que compram espaços em redes, como Band e Rede TV, para fazerem o que bem entenderem, incluindo espalhar visões não muito abonadoras sobre a dignidade e a liberdade. Essas igrejas são o que são porque aprenderam há muito a se aproveitar das concessões públicas de rádio e TV para o marketing de sua fé. Uma delas, inclusive, a Universal do Reino de Deus, é dona da Record.

Muitos religiosos apontam o dedo para o amor dos outros chamando-o de promiscuidade. Promiscuidade é a pornográfica relação entre o público e o privado que se estabelece em muitos casos como esses. Porque, repito mais uma vez, concessões de rádio e TV não deveriam ser absolutas e não poderiam ignorar a laicidade do Estado.

O mesmo não se aplica a jornais, revistas e outros meios que não contam com concessão para transmitir seu conteúdo. Eles podem fazer o que quiserem, professando o credo que melhor lhe aprouverem, respeitando as regras de civilidade e a dignidade alheia, é claro. Porque esta não é uma discussão para calar a voz de religiões, mas – pelo contrário – garantir que o Estado cumpra sua função de abraçar a todos, sem distinção, dando a todas as crenças a mesma oportunidade. Estado é Estado, religião é religião.

E não sou eu quem diz isso. Em Mateus, capítulo 22, versículo 21, o livro sagrado do cristianismo deixa bem claro o que o pessoal de hoje quer fazer de conta que não entende: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.

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